Uma pesquisa pode dar pistas sobre si?
recentemente, passei pela primeira fase da qualificação com o projeto de pesquisa no mestrado, um espaço onde apresentamos nossa pesquisa, e tanto os avaliadores quanto os colegas podem perguntar, contribuir, concordar ou discordar do que temos construído. a partir de agora, o próximo passo é a qualificação, que me leva diretamente para o início da dissertação e, basicamente, para o fim do primeiro ano do mestrado, que se encerra em breve.
meu projeto mudou muito e continuará mudando. como diz minha orientadora, o título, por exemplo, pode mudar até no dia da defesa. como é difícil, mas ainda assim bonito, ver uma teoria sendo construída dentro de você, algo muito parecido com uma impregnação, que vai ficando, ficando, ficando. como diria Winnicott: “a única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um novo caso é a teoria que levo comigo e que tem se tornado parte de mim, e em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada.”
hoje, sinto cada vez mais confiança no meu tema. não no sentido de ter garantias sobre o que vou encontrar ou de como será o próximo ano de escrita e leitura, mas posso dizer com muito mais certeza que usar a perspectiva da psicanálise — especialmente a partir de Zambra — para pensar um tema contemporâneo e, inclusive, muito caro para o próprio autor, tem me deixado bastante feliz.
é interessante como, nesse processo de construção da pesquisa, a escrita vai se moldando de forma viva, como se o que estamos produzindo fosse também um sujeito em desenvolvimento. percorrendo cada vez mais o caminho da teoria, especialmente em diálogo com a literatura, quase conseguimos materializar o que ressoa no pesquisador-analista transferencialmente.
há uma espécie de impregnação, como Winnicott disse, que vai sedimentando e transformando o pesquisador, assim como o analista é transformado pela escuta no setting. a ideia de ser atravessada transferencialmente pelo texto reflete como o analista-pesquisador é inevitavelmente afetado pelo material com o qual trabalha. essa interação, marcada por afetos e ressonâncias pessoais, cria um espaço de interlocução que me lembra o que Winnicott chamava de espaço potencial — um lugar intermediário — onde a subjetividade do pesquisador pode se conectar com o objeto de estudo de maneira criativa.
é dentro desse espaço que tanto a literatura quanto a psicanálise se aninham, e é também nele que, enquanto pesquisadores, nos movemos. na obra de Zambra que utilizo na pesquisa, esse espaço potencial emerge nas entrelinhas das cartas ao filho, naquilo que não é dito, mas que reverbera. o pai que escreve é também o pai que escuta e que se vê nas palavras que lança ao filho, quase como uma tentativa de inscrição, de um desejo de ser compreendido e de compreender.
quando penso no lugar do pesquisador nesse processo, a transferência entre mim e o objeto de estudo se torna ainda mais visível. não se trata apenas de uma análise fria ou distanciada, mas de um envolvimento transferencial, onde cada palavra que leio, cada parágrafo que escrevo, me tocam de maneira diferente. na literatura, assim como na clínica, há uma espera, uma pausa necessária para que o sentido se revele. Winnicott falava sobre a importância do tempo e do espaço para que o desenvolvimento saudável ocorra; talvez o mesmo valha para o ato de pesquisar.
André Green nomeou de mito de referência do psicanalista um conjunto indissociável formado pela escuta dos pacientes, a leitura dos psicanalistas predecessores, os diálogos com os colegas e os vestígios da própria análise pessoal do analista. Green me faz perceber que o mito de referência é uma espécie de montagem pessoal, um mosaico construído a partir de múltiplos encontros e influências, a partir do qual o psicanalista apreende os fenômenos com os quais se depara. então, assim com o autor propõe que o mito de referência não é uma estrutura fixa, mas algo que se transforma com o tempo e a experiência, vejo minha pesquisa se modificando e, com isso, crescendo.
um dossiê que ninguém pediu: outras coisas & links
✸ durante essa construção, manterei um diário de pesquisa sobre a leitura teórica e literária, compartilhando o que for possível por aqui, especialmente o que remeter à obra de Zambra e à transferência. a decisão de manter esse diário de leitura e pesquisa surge da necessidade de registrar as reflexões e ressonâncias que aparecem ao longo do processo, tanto no campo da teoria quanto da literatura.
✸ escolhi a obra As Meninas, de Velázquez, para ilustrar esta edição por dois motivos. o primeiro surgiu de uma fala da minha orientadora, durante nossas discussões sobre como abordar a literatura na pesquisa. ela mencionou a obra, destacando o aspecto em que o artista se retrata enquanto pinta, sugerindo um diálogo entre criador e criação. o segundo motivo é Zambra também referenciar a obra em seu livro Formas de Voltar para Casa, onde narra sua proximidade com aquilo que conta, ao meu ver, um tipo de transferência.
✸ uma edição onde eu falo sobre transferência, literatura e psicanálise
Tem sido lindo acompanhar esse processo de gestação da sua pesquisa <3