recentemente, me deparei com a performance “Art must be beautiful, artist must be beautiful” da Marina Abramović, e fui tomada por um misto de incômodo e fascínio. Esse desconforto me remeteu imediatamente à leitura de A Outra Filha, de Annie Ernaux, que fez parte do ciclo de leitura e escrita do Lacuna. assim como Abramović, Ernaux nos desafia, nos provoca a olhar para aquilo que está além da superfície – o belo, o agradável, o aceitável.
na performance de Abramović, vemos a artista forçando repetidamente a ideia de beleza, escovando os cabelos de maneira violenta, quase como se estivesse desafiando a própria noção de que a expressão artística deve ser coerente, controlada. há um desconforto evidente, como se a arte, ao ser emoldurada pela expectativa do belo, sufocasse a verdadeira expressão. essa experiência reverbera também no modo como Ernaux escreve, especialmente em A Outra Filha, onde a beleza da linguagem é frequentemente confrontada pelo conteúdo brutal e sincero de suas memórias.
relendo o livro de Ernaux, senti uma raiva latente, semelhante àquela que Marina provoca com sua performance – uma raiva do esforço de apagar, de reescrever uma infância sentida no lugar de outra. Ernaux nos conduz pelas bordas da ausência, explorando o impacto da morte de sua irmã, apagada e substituída por ela no imaginário dos pais. há um incômodo constante em ver como a autora lida com essa sombra, essa irmã idealizada que jamais errou, que não teve tempo de decepcionar. Ernaux, em sua escrita afiada, não tenta embelezar essa realidade – pelo contrário, a corta, expõe, desenterra.
discutimos no ciclo de leitura como a escrita de Ernaux opera como uma lâmina, um corte preciso que desvela o que é difícil de ser nomeado. assim como Abramovic não busca a beleza, Ernaux não nos oferece o consolo fácil de uma narrativa harmoniosa. ao contrário, ambas artistas nos deixam à deriva com nossos próprios sentimentos – raiva, desconforto, incômodo – nos obrigando a questionar as expectativas que carregamos sobre o que a arte e a escrita deveriam ser.
assim como a performance de Marina, os livros de Ernaux me fazem perceber, mais uma vez, que a arte não existe para confortar, não precisa ser bonita, nem agradável. a arte pode – e muitas vezes vai – nos confrontar com aquilo que evitamos, com o que não queremos sentir ou ver.
é justamente nisso que reside sua potência.
“A literatura é esse espelho meio torto, meio quebrado, que a gente coloca na frente da nossa cara e às vezes não quer ver, porque é uma imagem meio confusa, pois o que ele mostra é um tanto desconfortável. Mas a gente tem que encarar.” - Bruna Kalil Othero
que lindo! amo as obras da marina, é difícil sair ilesa do encontro com ela <3
Texto lindo, Maju! A arte desacomoda e ainda bem!